A história que eu conto

Jay Hirota
7 min readJan 20, 2019

Em seu livro, A Cidade das palavras, Alberto Manguel expõe com maestria como as histórias contadas ao longo das eras ajudaram a moldar o mundo do jeito como ele é hoje. O autor demonstra como o uso da linguagem afeta nossa relação com o mundo e a forma como enxergamos o Outro e principalmente nos auxilia na busca pela nossa própria identidade enquanto individuo e sociedade. A parte do livro que eu mais amo é seu subtítulo:

As histórias que contamos para saber quem somos.

Nós seres humanos somos contadores de histórias, cada qual à sua própria maneira, escrever é só uma delas, também é cantar, desenhar e fazer um filme. Até um prédio conta a história de seu arquiteto. Isso tudo é linguagem, formas de se expressar e se relacionar com outros. Contar nossa história pode fazer bem para quem a conta e quem a ouve.

Sei que algumas pessoas acham que histórias fictícias são apenas faz-de-conta, frutos da imaginação do autor como forma entretenimento e distração. E não há nada de errado em pensar dessa maneira, mas como Alberto Manguel diz: “a imaginação tem raízes profundas na realidade”.

Frankenstein é um livro originalmente publicado em 1818, conta a história de Victor Frankenstein, um médico que costura restos de vários cadáveres, criando um novo corpo e nele testa um procedimento que ele mesmo criou. Usando a eletricidade, Frankenstein anima o cadáver e dá vida a uma criatura tão horrenda que o Doutor, ao ver seu experimento ser bem sucedido, apavora-se, abandona a criatura e foge. O livro é um terror gótico que explora a relação entre um criador que teme e rejeita sua própria criação, e do outro lado a criatura, que nunca recebe um nome, mas tem sentimentos complexos, se ressente, persegue e aterroriza seu próprio criador.

A história por trás da criação do romance gótico é um bom exemplo de como a imaginação tem suas raízes na realidade

Em 1816 o famoso poeta Lord Byron foi anfitrião em sua casa do Lago Geneva, na Suíça, de dois amigos e colegas escritores: Percy Shelley e John Polidari. Percy também levou a namorada e sua cunhada, Mary e Jane Godwin. Fazia ainda mais frio do que o normal, pois um vulcão, onde hoje é a Indonésia, havia expelido tantas cinzas no ar que 1816 foi conhecido como o ano sem verão. Devido ao clima extremo, ficaram confinados no interior da casa e para se distraírem leram juntos antigos contos de terror. Lord Byron propôs um concurso, para ver quem criava a melhor história de terror. Naquela cabana à beira do lago suíço, Mary Godwin teve um pesadelo e em seus sonhos viu um homem que, brincando de Deus, criou outro homem e sentiu um medo mortal de sua própria criação. Imediatamente ela se pôs a escrever sua ideia.

Após casar com Percy, Mary Shelley trabalhou nessa ideia e a transformou no seu livro mais famoso. Em seus diários pessoais, ela confessa que frequentemente ouvia Percy discutindo com Lord Byron, sobre as teorias cientificas sobre a origem da vida, notavelmente Charles Darwin e o Galvanismo, baseado no cientista Luigi Galvani. Cientista italiano que em 1780 percebeu que uma corrente de eletricidade provocou contrações musculares no cadáver de um sapo, e então teorizou que a eletricidade era intrinsecamente relacionada à vida.

No romance a família do Dr. Frankenstein mora numa cabana à beira de um lago na Suíça e ambientes com temperaturas baixas são frequentes na narrativa. Talvez um reflexo do ano sem verão e o local onde a inspiração para a história veio à sua autora. O Dr. Victor é um cientista maluco, e seus experimentos tem base nas correntes cientificas da época, a trama em si é uma extrapolação da teoria do Galvanismo. O livro foi um dos percursores da ficção cientifica, mas há um outro fato biográfico, mais relevante:

Mary engravidou pela primeira vez no ano anterior à viagem para Suíça, mas a criança nasceu prematura, de apenas 7 meses, e sobreviveu poucos dias. Em seu diário pessoal ela escreveu:

“Sonhei que minha bebê voltou à vida , que estava apenas fria e que a esfreguei perto do fogo, e ela viveu. Acordei e encontrei nenhum bebê . Eu penso na pequenina o dia inteiro.”

O tema da volta à vida aparece novamente nesse sonho, assim como o frio. Mary foi compreensivelmente muito afetada pela morte prematura de sua filha. Alguns dizem que a criança morreu sem ter recebido um nome, tal qual a criatura de Frankenstein. Me parece plausível imaginar que Mary ficou traumatizada com a ideia de conceber vida a um ser capaz de sentir sofrimento, afinal de contas por quê naquele sonho à beira do Lago Geneva, o homem estava aterrorizado de sua criação? Por que Victor Frankenstein ao invés de comemorar o sucesso de seu experimento, tem medo de seu resultado e ao longo da história lida com o sentimento de culpa, chegando a se simpatizar pelo sofrimento que sente a sua criação e indaga-se até onde vai sua responsabilidade.

Além de se inspirar em conflitos internos de sua vida, imagino se Mary Shelley talvez tenha escrito sua história como uma maneira de lidar com suas próprias dúvidas e dilemas internos e por acaso, no processo produziu uma obra clássica, muito viva 201 anos depois de sua publicação.

Nós contamos histórias para saber quem somos.

Individualmente, contar histórias nos ajuda a dar sentido às nossas vivências. Dando nome aos sentimentos e ordem aos pensamentos acalmamos o tumulto interno em nossas mentes. Forjando nossa identidade individual.

Coletivamente, contar histórias ajuda o outro à sentir vivências diferentes, expondo nossas diferenças e semelhanças. Cada pessoa na sociedade entende melhor a sua posição nela. Forjando nossa identidade coletiva.

Photo by Marc Zimmer on Unsplash

Durante seus 20 e poucos anos Joanne Rowling trabalhou para a ONG defensora dos Direitos Humanos Amnesty International. Em um discurso para formandos de Harvard, ela relata ter tido contato com refugiados das muitas ditaduras e regimes totalitários do continente africano. Conheceu pessoas que estavam arriscando suas vidas para denunciar os abusos de seus governos tiranos e outros desesperados para dar e receber notícias de seus entes amados.

Ela fala da imaginação como um poder, por ser a condição de exercer a empatia e que podemos optar por imaginar aquilo que não é, como ter nascido diferente de nós, como alguém menos privilegiado. A imaginação nos permite aprender com situações que quem as vivenciou não foram nós, mas a pessoa que está nos contado sua história.

Em 1997 usando o nome J. K. Rowling, Joanne publicou Harry Potter e a Pedra Filosofal, dando inicio a uma saga que a tornaria bilionária e a franquia cinematográfica mais lucrativa da história, influenciando gerações de pessoa ao redor do mundo, inclusive esse quem vos escreve. O período de Rowling na Amnesty International é vital para entender a sua obra.

Na narrativa dos livros Harry, e o leitor, descobre que o mundo bruxo está se recuperando do trauma de um regime totalitário, mais de uma década após seu fim os bruxos ainda tem medo de pronunciar o nome de Voldemort. Nós aprendemos sobre esse período enquanto Harry dialoga com quem viveu durante ele. Harry conhece aqueles que foram a resistência, que perderem entes amados para o antigo regime. Conhecemos personagens como Sirius Black, o único de sua família que não apoiou o ditador e Neville Longbottom, cujos pais enlouqueceram sob tortura ordenada por Voldemort. O leitor descobre mais conforme Harry tem aulas sobre o período, lê a respeito nos jornais e encontra documentos antigos, exatamente como uma pessoa que cresceu durante um período democrático descobre sobre a antiga ditadura de seu país.

É evidente que a experiência de Rowling com os refugiados a inspirou e ajudou a dar mais verosimilhança ao pano de fundo do seu romance de ficção. Ela, assim como Harry, não precisou viver pessoalmente num país não-democrático para saber de seus horrores, e talvez após ler o livro, o leitor também não precisará. Rowling disse:

“Não precisamos de magia para mudar o mundo, já carregamos dentro de nós o poder necessário para isso, temos o poder de imaginar um mundo melhor”

Ao longo do livro, Harry descobre sobre sua história, a verdadeira causa da morte de seus pais, ouvindo a dos outros. Ao final dos livros ele precisa descobrir a história de Severus Snape, Alvos Dumbledore e Tom Riddle, para então saber qual é o seu lugar na história da sociedade bruxa. Esse conhecimento muda seu rumo.

As histórias que contamos para saber quem somos.

Mas, sabe…. para quem estamos contando essa história? Eu estou contando a minha história para mim mesmo, para saber quem sou. E contando pra você, para sabermos quem somos. E moldarmos nosso futuro

Obrigado por ler, espero que tenha aprendido algo sobre si, caso se interesse por uma outra perspectiva do mesmo assunto, segue abaixo o vídeo de um dos melhores canais Br do momento. Conte sua história no comentário abaixo!

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Jay Hirota

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